domingo, 19 de dezembro de 2010

Arsênio na bactéria dos outros é refresco

Arsênio na bactéria dos outros é refresco

Por Sergio Ulhoa Dani (*)

Pesquisadores da NASA descobriram no lago Mono da Califórnia uma bactéria que troca fósforo por arsênio nas suas moléculas, inclusive no DNA [1]. A descoberta é intrigante porque o arsênio é um elemento extremamente tóxico. Entretanto, o achado não autoriza a conclusão em favor da essencialidade do arsênio para nós e os nossos semelhantes.


Que certas formas de vida são viáveis em um ambiente com alta concentração de arsênio constitui verdade indisputável. A teoria que postula que o organismo pioneiro surgiu em um mundo rico em arsênio data dos anos 1990. O cientista alemão Günther Wächtershäuser propôs que minerais sulfetados como a arsenopirita (a forma mais comum do arsênio, um mineral formado pela combinação de arsênio, ferro e enxofre) foram o berço da vida primitiva no planeta Terra [2-4]. Esses minerais agem como catalisadores geológicos naturais no processo de fixação do carbono em moléculas orgânicas, o que constitui o aspecto mais fundamental da química da vida.


Também é indisputável que a Terra na época do surgimento do organismo
primitivo – mais de 4 bilhões de anos atrás (Baa) – era um ambiente
venenoso, com uma atmosfera que seria sufocante, um caldo que seria
indigesto, uma temperatura que seria insuportável para a maioria dos
seres vivos que conhecemos hoje, incluindo a nossa espécie. O aspecto
da Terra há mais de 4 bilhões de anos era semelhante ao de um inferno:
uma paisagem extraterrestre com milhares de erupções vulcânicas
cospindo arsênio, enxofre e outros venenos, dia e noite.

Provas de que os organismos pioneiros podem surgir mesmo em um inferno
desses podem ser encontradas ainda hoje em alguns lugares que
reproduzem as condições prevalentes da Terra cerca de 4 Baa: fontes
geotermais, vulcões, minas de ouro e o Lago Mono na Califórnia. Esses
lugares servem de habitat para micróbios que são capazes de prosperar
no meio do veneno, em temperaturas que cozinhariam nossos corpos, em
águas tão ácidas ou básicas que dissolveriam nossas peles, em
atmosferas tão venenosas que nos sufocariam. Os cientistas chamam
esses organismos de 'hipertolerantes’, ou 'extremófilos', ie, coisas
vivas adaptadas às condições ambientais extremas.

Entretanto, tais ambientes são obviamente inóspitos para as formas
mais complexas de vida, aqueles organismos que evoluíram processos
catalíticos complexos e finamente regulados que incluem centenas a
milhares de enzimas, organelas, células, tecidos e órgãos. O arsênio
interfere nesses processos catalíticos [5-8], portanto o arsênio deve
ser detoxificado via uma variedade de mecanismos. Os efeitos tóxicos
do arsênio têm um significado evolutivo, uma vez que todos os
organismos vivos – desde os quimioautotróficos que crescem reduzindo
ou oxidando arsênio [9-13] até os metazoa ou animais superiores –
carregam genes de resistência ao arsênio altamente conservados
[5,6,14,15], mas a susceptibilidade ao arsênio varia entre as espécies
de muitas ordens de magnitude [5,6,16] e mesmo os organismos
hipertolerantes cessarão de crescer e eventualmente morrerão quando
expostos aos limites espécie-específicos de tolerância ao arsênio
[17-19].

Daí se conclui que a troca de fósforo por arsênio é acidental, em vez
de facultativa, e a questão sobre se o arsênio é um elemento não
essencial ou tóxico é uma questão quantitativa, não uma questão
qualitativa. Há muito tempo sabe-se que o arsênio pode ser ingerido ou
assimilado inadvertidamente através das vias metabólicas dos
nutrientes essenciais ou benéficos como o fósforo [20]. O átomo de
arsênio é cerca de duas vezes mais pesado que o átomo do fósforo, mas
ambos compartilham algumas propriedades físico-químicas. Como um
análogo do fosfato, o arsenato compete com o fosfato e entra nas
células dos vegetais via transportadores de fosfato e também interfere
com o metabolismo do fósforo, podendo inclusive substituir o fósforo
em moléculas biológicas, como a molécula do DNA.

A descoberta de organismos que se viram com arsênio em excesso no
ambiente, inadvertidamente trocando o fósforo escasso pelo arsênio
abundante não constitui prova que o arsênio é um elemento essencial,
em vez de um veneno. Arsênio é mortal para os seres vivos, inclusive
os seres humanos. Basta um grama de trióxido de arsênio para matar
sete seres humanos adultos em poucas horas ou dias. Quantidades muito
menores, da ordem dos milionésimos do grama, se ingeridos ou inalados
durante meses ou anos, são suficientes para causar cada uma das
doenças que mais matam no mundo, incluindo doenças cerebrovasculares,
câncer, diabetes, demência e outras.

A vida complexa é exigente. No lago tétrico onde o arsênio compete com
o fósforo para tomar parte da vida de uma bactéria, a vida não está
para peixe. Tem arsênio demais. Mas arsênio na bactéria dos outros é
refresco.

(*) Sergio Dani é médico e geneticista do Instituto Medawar de
Pesquisa Médica e Ambiental, Paracatu-MG, Brasil, atualmente com o
Hospital das Clínicas de Kassel, Alemanha. srgdani@gmail.com

Referências:

[1] Wolfe-Simon F, Blum JS, Kulp TR, Gordon GW, Hoeft SE, Pett-Ridge
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Science. 2010 Dec 2. [Epub ahead of print]

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[4] Wächtershäuser G. Life in a ligand sphere. Proc Natl Acad Sci U S
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Sergio U. Dani
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